A (in)dependência do Brasil e o crime da Vale em Brumadinho
Dom Vicente Ferreira[1]
“Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2, 15).
Quanto mais nos posicionamos na defesa das pessoas atingidas pelo crime da Vale S.A., em Brumadinho, mais nos deparamos com a profundidade de suas feridas. É um trauma que sangra, diariamente, em veias de diversas bifurcações. Luto de cada um que vai se transformando em luta comum. Foram 272 pessoas assassinadas e uma série de danos irreparáveis à nossa mãe terra. Brumadinho não é uma situação apenas local, crime pontual. É a consequência de um sistema econômico global, que privilegia o lucro em detrimento da vida. Um colonialismo que insiste em oprimir nossos povos a partir do domínio de nossos territórios. Tudo em nome de levar nossas riquezas, deixando um buraco em nossos solos e no coração de tanta gente, mostrando que estamos muito longe da proclamada independência.
Além de toda a solidariedade prestada às vítimas, em diversas frentes trabalho, desde o dia 25 de janeiro de 2019, nossa Igreja tem contribuído também na busca pela memória, justiça e reparação integral. No contexto da comemoração dos 200 anos de (in)dependência do Brasil, partilhamos aqui nossas contribuições por um Brasil soberano. A partir das chagas de nossa gente, anunciamos que o mundo novo virá dos sobreviventes, dos atingidos ou estaremos, cada vez mais, ameaçando a permanência de nossa espécie nesse planeta. Se, por um lado, nosso país continua sendo colônia de megaprojetos extrativistas; por outro, inúmeras redes de atingidos lutam pelos direitos humanos e da terra. Assumimos, com clareza, o lado dos mais vulneráveis e lutamos também pelos direitos de toda a criação, como guardiões do Éden, que Deus nos deu para cuidar e não destruir.
Como Igreja, nos esforçamos para acompanhar e cobrar celeridade nos processos de mitigação de tantos danos. Nossa luta é também por justiça. Acreditamos que não há processo de reparação integral sem o empenho das Instituições de Justiça em priorizar a participação ampla das comunidades e dos indivíduos atingidos. Inclusive, garantindo-lhes o direito de dizerem não, por exemplo, a projetos como os da mineração. Por isso, é necessário tensionar a relação entre o direito e a sociedade a partir do que se entende por justiça socioambiental. Ouvir o povo, a luta protagonizada pelas pessoas atingidas, os movimentos sociais e tantos outros organismos é tarefa primordial nos processos de reparação. É necessário considerar o que já vem sendo construído com a participação popular, sem a qual os processos serão sempre injustos. Que, principalmente, as Instituições de Justiça sejam pautadas por um agir a partir do grito dos pobres e da terra, acolhendo suas reivindicações e construções coletivas.
Lembramos que a formação do direito, a partir das lutas sociais, nos traz as maiores lições de materialização da justiça no campo progressista, nas garantias dos Direitos Humanos na América Latina e na positivação dos direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. No entanto, o Brasil vive um tempo de extremas violações dos direitos de nossos povos e da terra. A flexibilização das leis de proteção ambiental e o aumento da fome são apenas alguns pontos de um cenário nacional que revela que nossa independência está longe de ser alcançada. E o que esperamos, sobretudo de quem lida com a justiça, nesses tempos? Que defendam os mais pobres e a Terra, nossa casa comum. Sabendo que, sem participação popular, o direito e a justiça serão propensos a defender o lado dos opressores.
Pensar a justiça homogênea seria desconsiderar a reparação reivindicada pelas pessoas atingidas, é ignorar as coletividades que lutam pelos seus próprios direitos e reproduzir a compreensão do direito de forma hegemônica. Precisamos ultrapassar as fronteiras do direito normativo. É urgente que ele se adeque às lutas diárias das pessoas atingidas, silenciadas pelo capital, e valorize as alternativas propostas à minério-dependência, assim como a reparação sem violência, que não assole seus modos de vida. É preciso que a justiça seja garantida enquanto uma linha da memória e que seja coerente com os projetos das demandas das comunidades já construídos, horizontalmente. A justiça social deve ser construída a partir das bases para que seja emancipatória diante da dignidade das pessoas atingidas.
Quando refletimos sobre os 200 anos de independência devemos nos perguntar: qual independência? Para quem? Em territórios minerados e saqueados vemos a permanência do processo colonial invasor e violento, reproduzido pelo colonialismo interno e externo, que retira a vida das comunidades no sul global. Pensar em Brumadinho é identificar trágica realidade neocolonial que, historicamente, faz sofrer o Brasil e toda a América Latina. A presença massacrante da lógica colonial significa a falta de liberdade mantida pela minério-dependência frente à resistência de um povo que luta para manter seus modos de vida.
Desde Brumadinho, sentimos muitos desencantos ao pensar na (in)dependência do Brasil. Ao que tudo indica, estamos ainda mais subjugados à lógica do mercado que está em função de 1% da população mundial que domina nosso planeta. Mas, junto com o povo, lutamos e sonhamos com nossos povos pela nossa soberania. No atual momento político, é de extrema importância eleger candidatas e candidatos que lutam pela ecologia integral. Não podemos continuar destruindo nossa casa comum como estamos fazendo. Milhões de brasileiras e de brasileiros já estão privados do uso da água, do pão nosso de cada dia, de uma casa digna para morar e de um pedaço de terra para plantar. É por isso que, desde Brumadinho, pensamos e fazemos nosso Brasil, como sirene que desperta consciências, nem que seja apenas pelo fato de fazer memória do acontecido para que nunca mais aconteça. Honrando a memória de todos que já pagaram, com a vida, o preço desse sistema de morte, defendemos um país democrático no qual nossos indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas, gente do campo e da cidade sejam respeitadas em seus direitos.
O que sofremos a partir de Brumadinho é resultado de uma independência que não veio. Nossa resistência, porém, é em prol de uma independência que virá, a partir dos gritos de tantas vítimas sistêmicas. Quisera que nesse 7 de setembro, nenhuma delas fossem esquecidas, como prova do quanto é necessário acabar com esses modelos de colonização. Que a palavra justiça, seja inspirada em princípios da equidade, e nunca conivente com quem faz sofrer. Quem tem que dizer para a Justiça o que é justo são os injustiçados. Se as instituições civis e religiosas continuarem aceitando os argumentos da Vale, da Samarco e de outros mega projetos extrativistas, nosso povo sempre será espoliado, a terra devastada e nunca seremos um país “independente”.
[1] Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte e coordenador da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (RENSER).
Fotografia: Isis Medeiros